Entrevista com a Profa. Dra. Ruth Wilson Gilmore feita pelo Prof. Dr. Cristiano Nunes


Por em 15 de março de 2024



Change everything: do capitalismo racial ao abolicionismo

Reconhecida como uma das mais importantes intelectuais da atualidade, a geógrafa estadunidense Ruth Wilson Gilmore tem a sua trajetória marcada por um pensamento alinhavado à ação, e constrói sua militância na esteira da crítica ao capitalismo racial. Propõe, a partir de um pensamento abolicionista, a elaboração de caminhos epistemológicos radicais condizentes com as contradições do nosso tempo.

Nessa entrevista, a intelectual posicionada na Tradição Radical Negra, diretora do Center for Place, Culture and Politics (CPCP) da City University of New York (CUNY – The Graduate Center), trata de temas como o seu encontro com a geografia, autores e obras do pensamento negro e suas leituras do capitalismo racial e carcerário.

Cristiano Nunes Alves, Livia Cangiano Antipon, Maria Fernanda Novo – Considerando sua trajetória, caracterizada por trânsitos interdisciplinares, e a geografia como disciplina que constrói teorias e reflexões para entender e explicar o mundo, quem é a teórica e ativista Ruth Gilmore?

Ruth Wilson Gilmore – Minha trajetória foi bastante atípica, pelo menos para o contexto estadunidense. Concluí a graduação quando tinha 22 anos. Fiz aulas de teatro por três anos depois da universidade. Nessa época, percebi que odiava e não queria mais ter qualquer envolvimento com o teatro profissional. Então, fui para o mundo, fiz muitas coisas e, durante todo esse tempo, mesmo quando estava na universidade e na escola de teatro, estive envolvida com diferentes tipos de organização política e ativismo. Muitos anos depois de terminar as aulas de teatro, em 1975, ou seja, em 1993, dezessete anos depois, comecei um doutorado em geografia. Vocês podem se perguntar o porquê de eu ter me aventurado na geografia, especificamente, dentre todas as disciplinas existentes. A resposta é meio complicada, mas também interessante. Eu tinha decidido, naqueles anos em que estive fora da universidade, que precisava estudar economia política de modo bem rigoroso. Eu estudava sozinha, mas também em grupos de leitura, indo a palestras, ouvindo e debatendo, mas não tinha um programa de estudo muito bem organizado. Por isso, eu não sabia o que eu não sabia. Eu não sabia o que eu não sabia. Tive conversas com meus camaradas mais próximos, que são amigos, mas também mentores, pessoas que admiro, cujos nomes vocês devem conhecer, como Clyde Woods, Paul Gilroy e Mike Davis. Conversei com eles, disse que precisava estudar esse corpo de conhecimento teórico e prático, e perguntei o que deveria fazer. Eles tinham várias ideias diferentes, mas ficava cada vez mais claro para mim que a geografia seria a disciplina onde eu teria a maior latitude, ou seja, a maior diversidade de métodos para entender as coisas, e que ela possibilitava a maior diversidade de objetos de análise que eu poderia estudar. Não era um campo estreito, era um campo muito amplo. Além disso, eu poderia seguir como uma materialista histórica que já tinha estudado bastante o marxismo do Terceiro Mundo. Através da geografia, eu poderia levar isso para a minha pesquisa. Essa é a história de como fui acidentalmente parar na geografia. Eu não tinha pensado nisso antes. Não sabia nada sobre geografia. Vocês sabem que a geografia não é lá grande coisa aqui nos Estados Unidos. Quando eu ainda estava procurando onde estudar, já conhecia David Harvey. Ele era lido e comentado por muitas pessoas. Então, a geografia já estava no meu horizonte. Outras pessoas também me levaram à geografia, mas foi Mike Davis, formado em história, que, em nossas conversas informais, começou a se descrever como geógrafa. Eu me perguntava “O que ele está querendo dizer com isso?” e isso realmente despertou minha curiosidade. Então, bem por acaso, ouvi falar de Neil Smith e finalmente o conheci, fui para a universidade e estudei com ele. O resto vocês já sabem. Mas foi de um modo muito indireto que fui parar na geografia.

Queríamos falar sobre seu pensamento de modo mais geral. Seu trabalho intelectual está diretamente conectado à tradição do Pensamento Negro Radical, baseado em referências como Stuart Hall, Cedric Robinson, Paul Gilroy, Cornel West, Robin Kelley e Angela Davis. Ao mesmo tempo, você usa referências da cultura negra, como Spike Lee, Audre Lorde e Public Enemy, o que torna suas proposições enraizadas no imaginário crítico e revolucionário que esses intelectuais, artistas e professores representam. Como você define o papel que a tradição radical negra desempenha no seu trabalho como intelectual e ativista?

Ótima pergunta! Muito difícil também, mas uma boa dificuldade. Encontrei o conceito de Tradição Radical Negra no trabalho de Cedric Robinson chamado Black Marxism,[1] em que ele refletiu sobre como organizadores e ativistas negros verdadeiramente comprometidos com a emancipação às vezes combinavam, de maneira bastante crítica, insights do materialismo histórico com outros que vieram de um tipo de consciência que Robinson descreveu como uma totalidade ontológica. Essa expressão, que parece muito abstrata e distante, é na verdade extremamente presente e significativa. Ela se relaciona com a realidade social, e sobre mudar tudo [change everthing]. O que temos como ponto de partida, à medida que realizamos nossa pesquisa militante e militância política, é que o entendimento de totalidade social não é o mesmo que dizer “Toda uma sociedade marginalizada”. A totalidade é formada a partir de todas essas partes diferentes que constituem umas às outras através de contradições. É aí que a luta ocorre, enquanto as pessoas estão lutando para alcançar ou manter sua emancipação. Cedric Robinson pensou que uma característica da Diáspora Negra nas Américas, que é quase – embora não completamente – descendente de escravos era, e talvez ainda seja, o compromisso com a sobrevivência da comunidade. O conceito, um pouco abstrato e pesado, que ele usa na análise – totalidade ontológica – enfoca esse aspecto relativamente básico, simples, e ainda assim muito complexo: a sobrevivência da comunidade. Ele trata disso por meio de sua reflexão sobre o que chamou de Tradição Radical Negra. Mas não sei se foi ele quem criou esse termo, sei que eu li no trabalho dele. No livro, depois de muitos capítulos, bastante detalhados, com explicações sobre os tipos de origens, digamos, e as mudanças no decorrer do tempo, das pessoas negras no Novo Mundo em relação a todas as outras forças nesse lado do Atlântico – ou seja, em relação a todas as forças –, ele analisa três estudos de caso, e examina a mudança no pensamento de W.E.B. Dubois, Richard Wright e C.L.R. James. Uma das coisas que mais me impactou em relação a esse livro, provavelmente na terceira vez que li. Não na primeira, porque na primeira pensei “Como um indivíduo é capaz de escrever esse livro tão impressionante?” Mas nessa terceira vez, pensei, “Acho que uma das coisas que ele está fazendo nos estudos de caso, nos perfis desses três escritores, que também são ativistas e organizadores políticos, era ver como a consciência deles mudou”. O que quer dizer – e não estou sendo uma liberal individualista aqui – como eles refizeram a si mesmos. Eles não se refizeram como indivíduos, simplesmente acordando um dia, olhando no espelho e dizendo “Vou ser de outro jeito”. Mas o fizeram em um contexto de luta e estudo, as duas coisas juntas. Se, como aprendi com Robinson, a Tradição Radical Negra é centrada em algo que permanece – a sobrevivência da comunidade – ela ao mesmo tempo conta com a mudança dinâmica para realizar essa coisa que permanece. Então, é nossa obrigação estarmos atentos não apenas ao que muda, mas também como a tradição em si não é fixa, está em constante mudança. É uma tradição viva. Não são só três coisas que depois de lidas estão encerradas. É algo que estudamos e, também, aquilo com que lutamos. Agora, vou falar algo que pode parecer meio fora de contexto, mas tenham paciência… Uma pessoa completamente diferente, que também está comprometida com a análise do materialismo histórico, que passou muito tempo pensando sobre a importância da cultura, não como decoração, mas como algo que é vivo e muda vidas, é um escritor galês, um teórico chamado Raymond Williams. Sessenta anos atrás, Raymond Williams,[2] no começo da década de 1960, escreveu um artigo incrível em que refletiu profundamente sobre de onde vem o sentido de possibilidade de mudança para as pessoas, e como isso muda com o tempo. Ele não inovou ao pensar sobre esse assunto, outras pessoas também pensaram. No entanto, de modo bastante notável, concentrou sua energia intelectual no que chamou de estrutura de sentimento [structure of felling]. Para ele, uma estrutura de sentimento é um tipo de história, é a narrativa que as pessoas contam para elas mesmas sobre o que é possível. Essas narrativas mudam, não apenas com o tempo. Em períodos diferentes e diferentes lugares, as pessoas têm diferentes estruturas de sentimento, mas também há estruturas contraditórias de sentimento dentro de uma totalidade única em qualquer momento dado. Todas essas coisas são verdadeiras. Dito isso, o que achei especialmente útil na análise dele foi o modo como falou sobre o que é tradição em sua perspectiva, algo que chamou de seleção e re-seleção de ancestrais. Assim, a forma da estrutura do sentimento, essa narrativa, o que permite a mudança, e o que restringe a mudança, organizam-se por meio de todas essas formas diferentes por meio das quais passamos a ser capazes de dizer a nós mesmos, contando histórias uns para os outros, incluindo cultura popular, ficção, igreja, lares e tudo o mais, tudo isso combinado. Há momentos em que pessoas, comunidades e grupos vão mudar quem consideram importantes e significativos na construção de sua consciência. Vocês mencionaram escritores que são importantes para mim. Alguns dos quais ainda estão conosco, ainda bem, como Paul Gilroy e Angela Davis. Outros que se foram, como Cedric Robinson, e posso dizer com certeza que, individualmente, reuni uma série de predecessores e ancestrais cujo trabalho é absolutamente vital para tudo que faço. Meus ancestrais não são meus parentes biológicos. Mas são meus parentes. São meus parentes sem dúvida alguma.

Você define raça como uma categoria socioespacial que encontra na globalização um campo de reprodução sustentado pelo uso da dupla diferença e poder. Esse processo de construir raça cria a funcionalidade da hierarquia que só existe na presença de forças persuasivas e coercitivas. Nesse sentido, o racismo aparece como uma força limitadora que leva a custos desproporcionais de participação em um mundo cada vez mais monetizado, e aparece em qualquer contexto social ou conjuntura política precisamente porque o racismo renova o acoplamento poder-diferença. Desse modo, você poderia explicar como entende o uso da violência no capitalismo racial que no último século triunfou sobre o que você define como “era de sacrifício humano”?  

Vamos começar com esse acoplamento entre poder e diferença. Pensar sobre esse binômio poder-diferença é algo que aprendi com Stuart Hall, mais um dos meus ancestrais. Esse binômio não precisa ser necessariamente fatal. O que aprendi com Stuart Hall e espero que tenha conseguido trazer para o meu trabalho nas publicações mais recentes é que o mais importante no binômio poder-diferença é quando a fatalidade governa a relação. Vou dizer algo sobre a relação poder-diferença não fatal e depois retomar a fatal. Podemos pensar sobre poder e diferença de modo que não fiquemos assustados nem neutros e ainda seja bastante incrível. O exemplo que frequentemente uso é minha melhor amiga. Minha melhor amiga que é minha melhor amiga por causa das nossas características complementares, poderíamos dizer nossas diferenças, fez com que nos atraíssemos mutuamente como amigas. Minha melhor amiga tem o poder de me fazer feliz por ser minha amiga. Nesse poder eu confio, ele realmente importa para mim e não quero que deixe de existir. Aqui não há nada objetivamente terrível no poder. Também podemos falar sobre isso em termos de dependência, pessoas mais velhas, jovens, cuidado de idosos, nossos vizinhos etc. Poder-diferença não é algo que seja objetiva e necessariamente configurado por meio da fatalidade. Mas quando é, e em todos os casos de racismo a fatalidade está ali ou próxima dali, e em outras conjunturas fatais, ou melhor, em outros binômios acontece a mesma coisa. Então, a hierarquia surge como algo que é verdadeiramente rígido em termos sociais, que isenta ou explica políticas [policies] como se fossem óbvias. Sejam elas políticas [policies] de criminalização ou de outros tipos. Assim, uma política [policy] que depende das forças da violência organizada, da criminalização, do policiamento, da prisão ou do exército também é uma força que atua via essas hierarquias sociais para se legitimar ou – talvez eu devesse dizer “e” –, através da aplicação da violência, produz poder para se legitimar. Já falei que não há capitalismo que não seja racial. Quando digo isso, gostaria que ficasse evidente que, de um lado – por estar falando com vocês e vocês serem do Brasil, que é o maior país negro neste hemisfério – uma parte do racial e do capitalismo racial tem a ver com experiências e com a situação política da descendência da escravidão de pessoas tornadas mercadoria [chattel slavery]. Isso é apenas uma parte do capitalismo racial, mas não é tudo. Se formos para longe desse hemisfério, se pensarmos para além dele, no Sudeste Asiático, por exemplo, algumas pessoas poderão dizer “Não há capitalismo racial lá, não há pessoas negras”. Ou “Não há pessoas brancas”. Mas ainda é racial, pois há pressupostos, alguns deles anteriores ao colonialismo, alguns que se solidificaram desde o fim do colonialismo, através das forças do imperialismo – que criam ou reforçam hierarquias sociais e que podem ter vários outros nomes –, cujo pressuposto é a consistência biológica de cada grupo. As pessoas nascem e morrem como parte daquele grupo, o que é um modo de pensar o racial. Também fazem parte das desculpas, justificativas ou véus, os tipos de abandono e terror que as pessoas experimentam no contexto da crise e reestruturação capitalista.

O complexo militar industrial alimenta a militarização internacional mas também a nacional. A crescente militarização depende da criação de um inimigo comum que você associa à morte social, conforme vemos na literatura crítica sobre a escravidão no capítulo “Race, Capitalism, Crisis and Abolitionist Organizing” [Raça, capitalismo, crise e organização abolicionista] de seu livro Abolition Geography.[3] A prisão é usada como um álibi para supostas soluções para problemas sociais gerados pela crise do capitalismo. Dito isso, como você pensa a relação prisão-escravidão? Uma segunda pergunta sobre esse tema é sobre o Brasil. Nós gostaríamos de saber sua perspectiva sobre um debate interno que atravessamos neste momento à medida que o governo brasileiro está reformulando as políticas de administração das prisões por meio da concessão de prisões previamente administradas pelo Estado para a iniciativa privada. Essa medida, conforme vemos, é similar àquela adotada pelos Estados Unidos em meados de 1990, pensando sobre o Congresso de Orlando, que abriu a prisão para iniciativas privadas que aumentaram a exploração de prisioneiros como mão de obra para mercados altamente lucrativos como uma das consequências. Quais são os riscos e impactos da privatização de prisões em um país com altas taxas de encarceramento e uma política de segurança pública organizada em torno da força policial?

Eu ouvi algumas coisas sobre o que está acontecendo no Brasil agora de um professor na universidade de Cambridge chamado Graham Denyer. Ele estava muito animado por saber que Bruno Xavier estava traduzindo meu livro[4] [Golden Gulag[5]], ele disse: “Agora é o momento em que poderia ser muito útil no Brasil!”. Uma das coisas que vou dizer vai ser um pouco decepcionante, mas não tanto pensando no contexto geral. Quero falar algo sobre a guerra e sobre o complexo militar industrial, o militarismo nacional. Um de meus colegas-camaradas-amigos chamado Ori Burton [Orisanmi Burton] acabou de publicar seu primeiro livro,[6] sobre o que ele chama de “a longa revolta de Attica”. É muito sabido em várias partes do mundo que houve um incrível levante na prisão de Attica que foi brutalmente reprimido. Todos que morreram naquele momento, tanto guardas como prisioneiros, foram mortos pelo Estado. Então o Estado matou guardas e prisioneiros também. O Estado de Nova York. Em primeiro lugar, esse levante não foi algo que aconteceu uma única vez. Haviam ocorrido longas lutas organizadas pelas pessoas em cárceres, prisões e cadeias em todo o Estado de Nova York, não foi uma coincidência. Não apenas posso mostrar esse caso a vocês, como também posso mostrar as pessoas reais e as ideias envolvidas. Ele acabou de publicar seu livro e a razão pela qual estou falando dele aqui é, primeiramente, porque é um ótimo livro e vocês deveriam lê-lo, mas também porque ele levou muito a sério o argumento que fiz muito consistentemente ao longo de toda a minha carreira de pesquisa e publicações sobre guerra e militarismo nacionais. Vivemos uma guerra, um estado de guerra. Essa é a primeira coisa que quero dizer. Estamos em um estado de guerra. Segundo, e relacionado a ele, talvez a melhor maneira de Ori Burton, de quem acabei de falar, conceitualizar esses estados constantes de guerra para nos lembrar que somos prisioneiros que vieram da guerra e que se tornaram escravos. Eu não me lembro da guerra. Nós não nos lembramos da guerra. Mas é o que temos aqui. Havia uma guerra que produzia aprisionamentos. Todas as guerras eram assim? Não, às vezes era algo como “Vamos capturar pessoas e vendê-las para traficantes de escravos”. Mas essa ainda é uma condição de guerra. Ori Burton direciona sua análise para pessoas que passaram boa parte de sua vida aprisionadas. O que essas pessoas haviam ensinado a ele é “somos todos prisioneiros de guerra. Alguns de nós estão do lado de fora e outros do lado de dentro. Então vamos pensar sobre isso como uma condição em que estamos”. Mais do que qualquer expectativa sobre a escravidão para o propósito de se utilizar o trabalho prisioneiro, esse estado de guerra nos ajuda a ver uma continuidade através dos séculos. Essa é a primeira coisa que quero dizer. A morte social perdura devido a algo que Orlando Patterson escreveu no livro Escravidão e morte social.[7] Vou falar disso como um adendo, para tirar logo do caminho: eu não acho os argumentos do afro-pessimismo nem um pouco úteis. Acho que são argumentos niilistas. São machistas [masculinist] e niilistas, é o que penso. Mas, em Escravidão e morte social, Orlando Patterson fez uma coisa notável, que é a seguinte: ele condensou em um longo livro tudo que ele e seus assistentes de pesquisa e sua esposa, que também era acadêmica, puderam ler em todas as línguas em que sabiam ler sobre escravidão no planeta ao longo do tempo. Tudo. Não é sobre a escravidão do povo negro, é sobre a escravidão como um todo no planeta ao longo do tempo. Ele estava escrevendo para ver se havia algo específico à escravidão e, se houvesse, o que seria isso, e como explicaria porque pessoas negras nos Estados Unidos ainda estavam sofrendo no século XX. Ele é negro. Ele é um professor em Harvard. No entanto, ele não é nem um pouco de esquerda. Mas mesmo assim ainda tinha curiosidade sobre essa questão. Ele então fez esse grande estudo, leu todas essas coisas, fez todo um trabalho de sumarização e criou o que chamou de Características Constituintes da Escravidão [The Constituent Features of Slavery] e falou sobre as características da escravidão que pareciam ser verdadeiras a todos os sistemas escravistas ao redor do mundo ao longo do tempo, que são: dominação coercitiva, alienação natal e desonra geral. Essas são as três características constituintes da escravidão. Vocês podem perceber que eu as sei de cor, vinte anos depois de ter dado aulas com esse livro. Essas são as características. Ele fala sobre isso nesse longo livro e, nas páginas iniciais, no primeiro capítulo, ele escreveu uma frase que achei incrivelmente elegante e eloquente. Ele disse: “Um caiu porque era o inimigo. O outro se tornou o inimigo porque havia caído”. Pensar sobre os que caíram inclui as pessoas que não são livres em termos de escravidão, mas também as que não são livres em termos de criminalização e encarceramento. Eu não acho que Orlando Patterson pensou a mesma coisa que estou pensando agora. Contudo, achei essa frase um modo tão elegante de pensar essas dinâmicas, tanto entre pessoas como entre lugares e no decorrer do tempo. Atualmente, a escravidão nos Estados Unidos, e acho que no Brasil, corrijam-me se eu estiver errada, não se traduz em “Capturamos todas essas pessoas para explorar seu trabalho”. Não se traduz desse modo. Nós capturamos todas essas pessoas e então o que acontece? Essa é a parte que vai decepcionar vocês: Contrariamente ao mito – sim, é um mito! – as prisões e cadeias nos Estados Unidos são públicas, públicas, públicas! São estatais e publicamente operadas. E 100% delas são financiadas publicamente. Há operadores privados em uma quantidade muito, muito pequena, entre 5% e 8%. O dinheiro é público e os operadores privados se beneficiam com um contrato e apenas gerenciam para gastar menos do que ganham e manter as pessoas na prisão. É daí que vem o lucro. Não sei o que está acontecendo no Brasil, mas vou especular um pouco.

É a mesma coisa. As concessões para as iniciativas privadas serão, na verdade, financiadas pelo dinheiro público. É uma transferência do dinheiro público para a iniciativa privada.

Exatamente! Esse tipo de coisa está acontecendo sob o neoliberalismo por meio de entidades políticas [polities] em todos os lugares: privatização de hospitais, exércitos privados, empresas capitalistas procurando o dinheiro que alguém vai gastar e tentando entender como persuadi-los a gastá-lo com essas empresas, correto? É isso que fazem em alguma medida. As empresas convencem os Estados. Não sei quem está no controle das prisões no sistema brasileiro, mas eles serão persuadidos: “Vejam, nós faremos isso de modo mais barato, melhor, mais rápido, mais seguro e mais legal…” Vão fazer todos os tipos de promessas para ganhar esse dinheiro e então prender pessoas contra a vontade delas. É mais ou menos assim que funciona. Isso é algo que tentei explicar. O que perpassa o sistema prisional, seja ele totalmente público ou com concessões privadas, ou seja, 100% do sistema na medida que as pessoas capturadas na prisão não estão sendo obrigadas a trabalhar e fazer coisas que alguém pode vender, significa que o que as faz monetizáveis é o fato de sua inação. O fato de que foram retiradas de suas comunidades e quem quer que seja pago, um servidor público ou um empregado de empresa privada, será pago para vigiar ou ser enfermeiro para uma pessoa que está na prisão. O que se transforma em dinheiro é o tempo livre da pessoa, o tempo, sendo totalmente comodificado. Vocês sabem porque todos nós lemos Marx. É a aniquilação do espaço pelo tempo. Totalmente. Esse é o problema. E por que ele é importante? Apenas porque tenho esse jeito inteligente de explicar as coisas que mostra: é o tempo que importa e não o lucro privado. Não, isso não é importante. O que importa é: nossa análise leva a uma ação que liberta pessoas. Quando as pessoas se voltam contra as privatizações como se houvesse algo específico e moralmente repreensível sobre as prisões privadas – e provavelmente há –, o que acontece, no fim das contas, é que todas essas concessões até podem ser canceladas, mas as prisões não fecham. Ninguém vai para casa. A questão com a qual nos confrontamos é: como libertar as pessoas? Se alguém puder me mostrar que lutar contra a privatização das prisões é um modo de libertar as pessoas, eu seria a primeira a me unir a essa luta. Então não é uma questão de “minha ideia é melhor”. O que aprendemos por meio da análise e trabalhando com as pessoas no decorrer do tempo é que muitas coisas contra as quais lutamos não resultam em emancipação, o que nos leva de volta à abolição, que é emancipação e ensaio [rehearsal].

Cristiano Nunes Alves é geógrafo e professor doutor da Universidade Estadual do Maranhão. Coordena o Núcleo de Estudos em Território, Cultura e Planejamento (MARIELLE) e realizou pós-doutoramento no CPCP da CUNY (The Graduate Center), sob supervisão de Ruth Gilmore. Pesquisa temas como circuitos culturais urbanos, comunicação e cotidiano e o papel do corpo enquanto categoria geográfica.

Livia Cangiano Antipon é geógrafa e doutoranda em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas, sob orientação do Prof. Dr. Márcio Cataia. Foi visiting scholar no CPCP da CUNY (The Graduate Center), sob supervisão de Ruth Gilmore e com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Pesquisa sobre Economia Política da Urbanização, focando na temática da alimentação e da fome.

Maria Fernanda Novo é doutora em filosofia na Unicamp, pós-doutora em filosofia na USP e visiting scholar no departamento de filosofia da CUNY (The Graduate Center). Bolsista Fapesp. Desenvolve pesquisa nas áreas de filosofia e raça, epistemologia contemporânea, epistemologia social, tecnologia, estudos de gênero e pensamento negro brasileiro.

Transcrição e tradução: Milena Durante.

Financiamento: Universidade Estadual do Maranhão (Programa de Pós-Graduação em Geografia).



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